Luciene conta que teve a vida transformada por projeto de apoio a pessoas gordas
Audiência é marcada por relatos de desrespeito e humilhação, mas também por exemplos de luta e união pela causa
Direito a uma cadeira confortável, à moda, a equipamentos de saúde adequados. Direito a acesso, mobilidade e trabalho. Direito a respeito e dignidade. Mesmo parecendo direitos básicos, essas ainda são demandas das pessoas gordas, que cobram políticas públicas, visibilidade para a causa e punição para a gordofobia.
Em audiência da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), nesta quarta-feira (3/5/23), mulheres gordas que participam de movimentos de luta trouxeram relatos de desrespeito e humilhação, mas também indicaram caminhos para o enfrentamento dessa desigualdade.
“A gordofobia não é um preconceito isolado, eventual. É de todos os dias. É de toda a vida”, define Malu Jimenez, ao citar os vários percalços que as pessoas gordas enfrentam no dia a dia. Filósofa, professora e pesquisadora do tema, ela contrapõe que a gordofobia é difícil de ser detectada porque vem disfarçada de cuidados, de preocupação com a saúde.
“É urgente trazer essa luta para o debate. Pesquisas mostra que 60% dos brasileiros e 40% dos mineiros são gordos. É muita gente pra não se falar sobre isso. E esse estigma mata mais do que ouvimos dizer.”
Por outro lado, Malu comemora o crescimento das pesquisas acadêmicas sobre o tema. São mais de 60 atualmente, em várias universidades.
“A palavra central da nossa vida é humilhação. E dignidade é algo muito básico para ser negado”, reforça Rafaela Lima, fundadora da Agência de Iniciativa Cidadã e do Instituto Diversas. Ela enfatiza que a gordofobia é um preconceito que se sobrepõe a outros, já que as maiores vítimas são mulheres, negras e pobres.
Mesmo sendo uma ativista da causa, Rafaela conta que só entendeu a gordofobia recentemente. “Eu achava que devia um corpo magro à sociedade. Minha vida era sempre adiada, como se meu corpo fosse temporário”, relata. Ela se submeteu a uma cirurgia bariátrica, que já foi refeita quatro vezes. “Ela não funciona para mais de 30% dos casos”, aponta.
- Saúde tem indicado cirurgias, apontam participantes
A cirurgia bariátrica, segundo relatos das participantes, tem sido indicada de forma indiscriminada nos atendimentos no sistema de saúde. E a gordura é apontada como culpada, mesmo antes de qualquer diagnóstico. “Eu quero é nutricionista, reeducação alimentar, psicólogo, tratamento digno”, contesta Gláucia Leilane Rocha da Silva, idealizadora do Projeto Plus Size da Quebrada.
O projeto busca o empoderamento das pessoas gordas e oferece apoio psicológico, entre outros amparos. Luciene Oliveira Gomes já escutou que precisava de uma balança para gado, já pensou em se matar, mas hoje chora com as oportunidades que o projeto lhe trouxe. “O mundo plus size mudou minha vida. Hoje me sinto linda e feliz. O gordo também vive, ama, tem filhos”, aponta.
Transformação semelhante ocorreu com Sandra Mara, que idealizou o BH Estilo Plus, diante da falta de acesso à moda. Criado em 2015 como uma feira, ele se tornou um movimento cultural e político.
Durante os depoimentos ao final da audiência, outros participantes relataram a dor pela humilhação e pelo preconceito. “Toda vez que eu quis ser magra, era para ser aceita e amada, e não por estar insatisfeita com meu corpo”, afirmou a produtora Carol Bersolini. Hoje, consciente sobre a gordofobia, ela avalia que o simples existir de uma pessoa gorda é um ato político.
- Projetos tramitam na ALMG
Autora do requerimento para a audiência, a deputada Andréia de Jesus (PT), presidenta da comissão, salientou que ignorar as demandas das pessoas gordas é uma forma de matar. Ela defendeu a construção de direitos a partir da escuta desse público e afirmou que qualquer coisa que impeça esses direitos deve ser criminalizada.
A deputada é autora do Projeto de Lei (PL) 352/23, em tramitação na ALMG, que traz medidas de proteção e de inclusão da pessoa gorda. A proposta foi anexada ao PL 4.063/22, da deputada Ione Pinheiro (União), que trata de assentos especiais no transporte coletivo. Na audiência, Andréia de Jesus anunciou entendimento entre as parlamentares para apresentarem um novo texto conjunto.
Também estiveram na audiência o deputado Leleco Pimentel e a deputada Macaé Evaristo, ambos do PT. Ele classificou a luta das pessoas gordas como um movimento “em favor da vida”. Já a deputada defendeu uma educação inclusiva com acessibilidade de desenho universal.
Ministério Público terá balizas de atuação
O Promotor de Justiça Allender Barreto da Silva, da Coordenadoria de Combate ao Racismo e Todas as Outras Formas de Discriminação, considerou a audiência uma oportunidade de aprendizado e anunciou que repassará as informações ao Ministério Público como balizas de atuação em cartilha que está sendo construída. “O MP tem que se responsabilizar também pelo que não foi feito”, justificou.
De acordo com o promotor, embora a gordofobia não seja tratada de forma específica no direito antidiscriminatório, toda a sua fundamentação está prevista na Constituição, em premissas como a dignidade da pessoa humana. “O Estado brasileiro ainda não enfrentou isso e tem um débito histórico com essas pessoas”, afirmou.
O representante do Executivo, Alysson Faria Costa, da Secretaria de Educação, listou iniciativas da pasta, como o Programa de Convivência Democrática, criado em 2021 para fortalecer o papel da escola na disseminação da tolerância e do respeito, e o Sistema de Monitoramento de Violação de Direitos. Segundo ele, o mobiliário diferenciado também está disponível, desde que solicitado pela escola.
Andréia de Jesus ponderou que a criança gorda deve se sentar onde quiser e que, por isso, todo o mobiliário deve ser confortável para todos os estudantes. Ela lamentou a ausência de outras secretarias convidadas e anunciou que fará diversos requerimentos com orientações a órgãos públicos, a partir das demandas apresentadas na reunião.