Com o apoio do Governo do Estado, o atendimento especializado no processo transexualizador completa um ano com quase 2 mil consultas de 11 especialidades
“Desde pequeno eu sentia algo diferente em mim e não sabia o quê”, revela Erick Henrique, 24 anos. “Eu achava que era doente” reflete Celine, 25. “Minha mãe não gostava quando eu vestia as roupas do meu pai”, conta Eduardo Nascimento, 24. “Eu tomei hormônio escondido desde os 14 anos”, confessa Yara Xavier, 22. “Já ouvi de especialistas que meu ´caso´ não tinha jeito” denuncia, Rafael de Paula, 24 anos. “Eu vivia com um incômodo que corrói por dentro” desabafa Daniel Tenebra, 18.
Os relatos são de jovens transgêneros. Com pouca idade, carregam um passado de intenso sofrimento. Conflito, desinformação, preconceito e falta de assistência médica e psicológica adequada tornaram ainda mais delicada a vivência na adolescência. E, agora, começaram a reescrever suas histórias. Desde o ano passado, todos eles contam com o apoio da equipe multidisciplinar do Ambulatório Trans do Hospital Eduardo de Menezes (HEM), da rede da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig).
“Reverter histórias de sofrimento em histórias de conquista é nosso foco. E, acompanhar de perto essas transformações é uma chance de aprendizado indescritível para nós”
Andreia dos Reis, psicóloga
O atendimento completou um ano de funcionamento em novembro. Nesta quinta-feira (29/11), das 10h às 13h, haverá apresentação de um balanço dos primeiros 12 meses.
O serviço, especializado no processo transexualizador ambulatorial, foi o primeiro na saúde pública estadual, o segundo em Minas Gerais e o quinto do país e já beneficiou 204 pessoas de oito regiões mineiras, realizando quase 2 mil consultas nas áreas da psiquiatra, endocrinologia, clínica médica, enfermagem, psicologia e serviço social, ginecologia, dermatologia, urologia, proctologista e cirurgia geral.
O acompanhamento é individualizado e inclui avaliação dos profissionais treinados nos cuidados para a população de transexual e travesti. “Foi no acolhimento respeitoso e na atuação especializada que conseguimos dar qualidade de vida aos pacientes que procuram”, esclarece Andreia dos Reis, psicóloga e coordenadora técnica do ambulatório. “Para melhorar, a gente precisa estar à vontade também com quem cuida da gente” afirma Rafael, enquanto passa a mão em sua barba que ele garante ser um sucesso em Diamantina, onde mora.
“Eu me sentia infeliz, só queria dormir e, em momentos de desespero, eu me cortava. Parecia que eu era o esquisito e ninguém me entendia. Quando cheguei aqui, fui respeitado. E vi outras pessoas que se sentem como eu, tive um alívio para poder ser o que sou. Já até mudei meu nome e gênero”, revela Eduardo, que está procurando emprego e quer voltar a estudar.
Ele conta que o apoio irrestrito da namorada o ajudou inclusive a ter forças para buscar os cuidados especializados: “Ao descobrir sua identidade, Eduardo me fez questionar a minha própria orientação sexual. Nós conversamos e decidimos procurar juntos o Ambulatório Trans. O jeito carinhoso que fomos recebidos aqui fortaleceu nosso amor” detalha emocionada a cantora Camila Nogueira, 23 anos.
Para conseguir esses resultados com os pacientes, toda a equipe é permanentemente capacitada. Dessa forma, o acolhimento começa na portaria, já respeitando o nome social. Com a instalação do serviço, o grupo de profissionais do HEM tem se atualizado também conceitualmente sobre à temática, por meio de seminários internos sobre identidade de gênero, orientação sexual e direitos.
E tem sido uma oportunidade de crescimento pessoal e profissional, como confidencia o endocrinologista Eduardo Ribeiro: “Ao encarar esse trabalho, encontrei dois desafios: o profissional, pois o conhecimento médico na área está por se fazer. E o humano, pois fui obrigado a repensar meus valores e reavaliar minha vida. Entender o tratamento como um direito de ser o que se é me ajudou, inclusive, a explicar aos pacientes que o gênero é muito mais o hormônio. É atitude. Isso parece tranquilizá-los. E eu me sinto realizado por isso”.
Daniel é atendido no ambulatório há seis meses e agora se sente mais afetivo e calmo: “Eu voltei a morar com a minha mãe e me sinto uma companhia mais agradável. Estou empregado e pretendo fazer faculdade”, diz. Andreia explica que o objetivo central das ações multidisciplinares é o acolhimento dessas pessoas e a redução do sofrimento: “Reverter histórias de sofrimento em histórias de conquista é nosso foco. E, acompanhar de perto essas transformações é uma chance de melhormarmos como pessoas, além aprendizado indescritível para nós, profissionais”.
Yara já havia feito acompanhamento médico particular em Pitangui. Mas afirma que sua condição era uma exceção: “Todos aqui são preparados. Eu sigo as orientações. Entendi que é muito perigoso tomar remédio sem controle. Estou bem comigo mesma”, relata.
A iniciativa pioneira é resultado do esforço coletivo da Fhemig, Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) e do Comitê Técnico Estadual de Saúde Integral e Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac). Para Thaysa Drummond, diretora do HEM, os frutos deste trabalho surpreenderam a todos. “A abertura do ambulatório representa a entrada digna de travestis e transexuais na saúde pública. E exige capacitação permanente, do porteiro ao corpo clínico, para que o serviço cuide da saúde, respeite a individualidade e, ainda, combata a transfobia na comunidade. Isso não é apenas um atendimento de qualidade. Mas, na verdade uma chance de desenvolvimento pessoal”.
Focada nessa transformação, a goiana Eva, 27 anos, deixou a tristeza para trás. Ela está em BH fazendo doutorado e planeja se casar no ano que vem. “Por passar por muitas dificuldades e alguns sofrimentos, eu aprendi a me proteger, a me cuidar e estou feliz comigo mesma” celebra a jovem que é atendida há seis meses pela equipe do HEM.
“É para comemorar mesmo, já que o ambulatório amplia as políticas voltadas para as minorias de direitos, antes negligenciadas pelo poder público. Precisamos seguir ajudando essas pessoas a existir confortavelmente” comenta Douglas Miranda, coordenador especial de Políticas de Diversidade Sexual da Sedpac.
“Por passar por muitas dificuldades e alguns sofrimentos, eu aprendi a me proteger, a me cuidar e estou feliz comigo mesma”
Eva Ferreira, goiana, de 27 anos
É o que pode ser visto em mudanças sutis ou expressivas. Físicas ou afetivas. Erick, por exemplo, está totalmente adaptado ao mundo masculino: “Entendi que não há nada errado comigo”. Já o guarda-roupa de Eduardo, foi todo mudado e faz o estilo moderno. Ele faz questão do boné e dos piercings: “ É bom poder vestir eu quero sem julgamentos”.
Lorena Lemos, coordenadora do Núcleo de Políticas de Promoção da Equidade em Saúde da SES-MG, considera o momento um marco histórico. “O Ambulatório Trans amplia o próprio conceito de atendimento em saúde e motiva a seguir em frente, pois ainda há muito a fazer”.
O que diz a lei
A implementação do processo transexualizador no SUS foi redefinido e ampliado pela portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, que regulamenta os procedimentos para a adequação corporal para as pessoas que sofrem com a incompatibilidade de gênero, caracterizada pelo não reconhecimento do próprio corpo em relação à identidade de gênero garantia do acesso a todas as pessoas que necessitam desse tipo de cuidado desde ao tratamento endocrinológico até a redesignação sexual (cirurgia).
Atualmente, o Ambulatório Trans do HEM oferece os serviços ambulatoriais e ainda não está credenciado no SUS. A Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte informou que ainda falta definir o tipo de serviço que será ofertado no Ambulatório Trans, para assim dar encaminhamento ao credenciamento junto ao Governo Federal. Até que isso aconteça, o atendimento é 100% mantido pelo Estado, de forma gratuita. As cirurgias, que são atendimentos hospitalares, e medicações são pagas pelos pacientes.
Para entender mais
Identidade de gênero é a forma como as pessoas se reconhecem independentemente de sua constituição física masculina ou feminina. Os transexuais se identificam com um gênero diferente da designação biológica e de registro civil.
Já a orientação sexual é o sentimento de atração sexual de uma pessoa em relação a outra: heterossexual (gênero oposto), homossexual (mesmo gênero) ou de ambos os gêneros, bissexual. Os transgêneros são homens trans – gênero de nascimento feminino e identificação, masculino. E mulheres transexuais – gênero de nascimento masculino e identificação, feminino. Isso não interfere na orientação sexual que pode ser qualquer uma.
Serviço
Os atendimentos acontecem todas as quintas-feiras, das 7h30 às 13h, por consultas agendadas pelo fone: 3328-5055. O Hospital Eduardo de Menezes fica na Rua Doutor Cristiano Rezende 2213, bairro Bonsucesso, em Belo Horizonte.